Meu Quarto, Domínio Público

Autorretrato 

Fotografia 35 mm

Autorretrato, 35mm. info
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O voyeur, o enigma e Meu Quarto, Domínio Público de Tathy Yazigi


O ato de fotografar sempre presume um pouco do caráter voyeur. Mesmo presente na cena a ser fotografada, há uma fração subjetiva da relação entre fotógrafo e modelo que não se relacionam, pois se trata justamente da subjetividade do fotógrafo que não é visível, portanto, se existe uma experiência erótica do artista fotógrafo, essa informação sempre estará velada nos recônditos de sua consciência. De fato, o voyeur é definido como aquele sujeito que extrai seu prazer a partir da observação de outra pessoa, sem ser percebido.

Meu Quarto, propõe uma inversão de sentido do voyeur fazendo com que o espectador assuma e também revele um pouco seu voyeurismo. Esta mostra reúne um conjunto de autorretratos feitos em quartos de hotéise casas por diversas cidades que a fotógrafa visitou no mundo, desde 2012 até janeiro de 2014. Sua experiência fotográfica começou num quarto caverna na Capadócia, Turquia, e continuou por cidades da Tailândia, por Los Angeles, Santa Cruz, São Francisco, Nova York, Cuba, Minas Gerais, Rio de Janeiro e mais alguns quartos por São Paulo.

Em suas fotografias duas categorias clássicas da arte são revisitadas, a primeira, o autorretrato, gênero que se afirma autônomo desde o século XIV, e o segundo, o nu artístico, tema difícil de se abordar pois sua representação simbólica vem sendo construída desde que o corpo emerge como uma entidade sagrada, mística, ou ainda, como ideal de beleza segundo as formulações clássicas da Grécia Antiga, até chegarmos às concepções modernas do ocidente segundo as quais o corpo também passa a representar e se assumir como um objeto de atração erótica. Da concepção sagrada que a escultura paleolítica Vênus de Willendorf incorpora até o sentido obsceno que representou a pintura Olympia (1863) de Edouard Manet, para muitos críticos da época, o que observamos na história da arte é a tentativa dos artistas de compreender os sentidos que o corpo desperta na busca do autoconhecimento e do próprio conhecimento do mundo, entendendo o corpo como um sistema que nos determina um modo de estar no mundo e, portanto, de percebê-lo e conhecê-lo.

Essa dimensão histórica e cultural do corpo está latente em seus trabalhos e Tathy Yazigi vai partir de suas inquietações pessoais na busca de reconhecer o próprio corpo, de suas possibilidades de estar no espaço e no tempo em que vive. Cada cidade e cada quarto inspira uma composição singular onde seu corpo emerge como protagonista do drama visual e existencial em curso. Na vida contemporânea ocidental ver corpos nus já se tornou algo comum ao ponto de ter se tornado banal. Afinal, todo corpo nu é tão somente um corpo nu. Ciente disso, Tathy vai explorar outro campo da experiência visual do corpo, evocando um corpo enigma, fragmentos frágeis e plenos de sentidos a serem novamente descobertos pelo espectador, um dorso, um seio, um braço, uma perna, uma mão, seu cabelo, sua cabeça, sua pele, tudo ali, mas em partes que se fundem em cada atmosfera onírica inventada nos quartos por onde passou e pousou. Mas essa descoberta não será feita de qualquer forma, ela vai nos fazer espiar.

O modo de apresentar e expor seus autorretratos também é provocativo, pois coloca o espectador na posição de voyeur, já que todas suas fotografias foram pensadas para serem apresentadas em caixas compartimentadas onde somente é possível visualizar suas fotos através de um pequeno orifício. Mas Yazigi nos lança para além do voyeurismo, onde os sentidos de prazer e erotismo são suspendidos para dar lugar a outra leitura do nudismo, sua pesquisa visual incide na criação do enigma-corpo-mulher. Mais do que provocar a imaginação erótica, sua intenção é dividir a sensação de solidão que, afinal, todo homem vive, pois já não se trata do gênero feminino, mas de um sentimento vivido por todo ser humano. Deste modo, seu corpo torna-se o objeto desta experiência existencial, plástica e sensitiva. Assim, ela nos desafia:

“Eu desafio o público a contemplar imagens de um corpo nu de uma maneira não erótica, mas geométrica, estética e rara. E de forma interativa, quando proponho uma distância tão pequena entre observador e fotografia.”

A descoberta da fotografia analógica dentro do seu repertório simbólico construído no campo do teatro e da dança, lhe permitiu mais uma ferramenta de invenção para pensar essas narrativas estéticas sobre seu corpo em trânsito por cidades e quartos do mundo. Sabemos que a dança e o teatro são campos de experiência plástica que aprofundam os sentidos e a consciência do corpo. No caso da Yazigi, o acúmulo destas experiências foram trazidas para o campo da fotografia conferindo maior dramaticidade na criação de suas cenas fotográficas.

Podemos especular que o modo de exposição de suas imagens sugerem uma apresentação cênica, onde cada quarto-fotografia significaria atos que revelariam, não só o voyeur que existe em cada um de nós, como também, os pequenos dramas e comédias contidas nos sentidos que construímos do nosso corpo e de nós mesmos.

Se o buraco é a fechadura, o corpo é a chave para responder ao enigma e mistério que ainda repousa nesta estrutura biológica feita de carne, osso, pensamento e emoção, vivida por todo ser humano.


Luciano CortaRuas

Curador

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